Quantas pessoas são sustentadas por um único sorriso em um dia difícil?

Todos os dias há acontecimentos da maior importância na rua onde moro. Paradoxalmente, são momentos de uma relevância tão grande sem os quais não haveria vida na terra, mas também são pequenos e que podem passar despercebidos para a grande maioria, enredada nesta temporalidade acelerada pela acumulação do capital, que não podemos notar porque não é no nosso bolso que ele se amontoa. Enfim, é nessa rua em que moro que a vida acontece.

Uma mulher colocou em uma varanda um alimentador para beija-flores, com água e vitaminas para ajudar esses seres lindos a sobreviverem ao calor abrasador que tem feito. É um recipiente simples, cilíndrico e transparente, mas com uma missão nobre, pois a mulher se preocupa em colocar uma mistura adequada para pássaros, não o açúcar que muitos colocam talvez sem saberem do mal que isso faz aos animais. Os colibris apareceram e beberam do néctar oferecido, mas quem virou freguês assíduo foram dois filhotes de bem-te-vis pequenininhos e espertos que, com muita habilidade, conseguem beber da água que represa nas bordas do bebedouro, ancorando-se nos galhos de uma planta que está próxima.

Em outra casa, que é geminada e tem a aparência dos casarões antigos, com varanda na frente e quintal atrás, mora uma família. Só nesta pequena frase coube tanta riqueza: casa, varanda, quintal e família. O casal tem dois filhos: uma menina que aparenta uns dez anos e um menino pequeno, de alguns meses. Com eles vivem uma cachorra grande e dourada, muito simpática, e outra bem pequena de corpo branco com manchas pretas e marrons. A pequena é bem bravinha com todos que não conhece, mas guardiã fiel de seus amos. Em muitas tardes pude ouvir as brincadeiras que, imagino, envolvem um balanço, as cadelas e a menina maior; e os risos de seu irmãozinho, de fundo..

Do outro lado dessa casa geminada tem um cartório civil. Quase todas as manhãs sou testemunha -  não convidada - de casais com olhares esperançosos e ansiosos. Chegam neste lugar para assinarem um papel que diz: quero passar a vida ao seu lado. Pobres financeiramente em sua grande maioria, vejo que eles estão apostando tudo um no outro. Me enternece por escolherem a melhor roupa, convidarem amigos e familiares para viverem essa união. Logo depois da assinatura correm para a frente do casarão para fazerem uma foto com o celular. A primeira depois de casados. Alguns também se aproveitam de um belo jardim, pertencente a uma mansão que fica em frente ao cartório, para a foto mais esperada. Eu sempre peço a Deus pela felicidade deles.

Bem no início da rua, um sobrado com duas janelas na parte de cima expõe vários vasos de rosas-do-deserto, cada um de uma cor, com uma inflorescência abundante que demonstra a sabedoria da jardineira que as cuida. Generosa, ela cultiva e os expõe gratuitamente. Acredito que, pensando que ver as flores, pode ajudar alguém. Quantas vezes percebi as pessoas diminuindo os passos, com os olhos hipnotizados pelas rosas, entortando os pescoços para ver a beleza até quando podem. É um breve instante em que os atentos observadores se desprenderam dos problemas pessoais. E as nuvens cinzas foram dissipadas, ainda que brevemente, em favor da mais singela manifestação de carinho gratuito.

Um galpão antigo foi demolido e agora funciona no terreno que restou um estacionamento. Ali, um senhor de idade fica o dia inteiro no caixa, gerenciando o serviço. No final de todas as tardes ele joga canjiquinha para os passarinhos. E vem uma revoada de canários-da-terra se alimentar. Ele lança a quirelinha e fica olhando as aves encherem as pancinhas. Dá para sentir a satisfação dele.

Tem uma academia de ginástica na minha rua. É lá onde meu marido começou a se exercitar. Foi lá também onde ele reencontrou uma pessoa que conheceu há muitos anos enquanto era técnico de enfermagem de uma unidade de saúde, um adolescente que ficou cego porque foi diagnosticado com câncer e erraram na dosagem da quimioterapia. Esse menino está se dedicando a ter mais qualidade de vida. Renunciou aos sentimentos de autocomiseração, lutando contra as dores do passado enquanto constrói um futuro bom e recompensador. Ali naquela academia ele inspira a todos. A mim também.

Na casa onde moro, a antiga moradora plantou um pé de ipê-de-jardim bem na frente. Na noite em que me mudei para cá, tinha duas rolinhas dormindo nele bem encostadinhas uma à outra. Me arrependo de ter olhado fixamente para aquele casal tão amável. Acho que me excedi na invasão de privacidade e eles não voltaram mais. Essas delicadezas não suportam nossa carência. Há de se ter mais tato e suavidade.

Eu também tento dar alguma contribuição para a melodia harmoniosa que minha rua produz. Deixo minha cachorrinha na mureta da varanda de casa, ela passa a cabeça pelas grades e faz o serviço de vigia da rua. Às vezes temo que alguém a leve embora, por ser mansa e amigável, mas prefiro apostar no espírito humano.

Certo dia um homem vinha triste pela calçada quando percebeu a Capitu abanando o rabo e sorriu. Olhou na varanda as minhas samambaias e as elogiou. Quantas pessoas são sustentadas por um único sorriso em um dia difícil? Eu sei como é isso e sei que aquele instante pode ter salvado o dia dele. Então tudo valeu a pena.

Coisas da maior importância acontecem na minha rua todos os dias. Sou grata por ter olhos e ouvidos para receber essas graças que flutuam pelo ar em busca de corações onde possam pousar. Acho que você está sentindo que a minha rua, de tão minha, parece tão sua… Há mais para dizer sobre ela, seus casarões e seus abandonos, os avós e seus netos, as mangueiras que sobrevivem com dificuldade ao extermínio cotidiano, seu piso em bloquete que resiste à indecência do asfalto e, como disse, muitas outras coisas da maior importância que mantém esse mundo de pé.


*Keila Siqueira de Lima tem formação em jornalismo e atualmente é servidora da Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais, na assessoria de comunicação. Está cursando mestrado em Comunicação, na UFJF.



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