Um lobo guará corre à noite pelas ruas de Visconde do Rio Branco, primeiro fugindo das queimadas, e nas imagens, fugindo do homem que o filma de dentro de um carro. Dias antes, uma cena semelhante aconteceu em Ouro Preto: um animal desorientado na noite quente e abafada, com fome e sede, provavelmente machucado, correndo do paparazzi. Imagens compartilhadas nas plataformas online. Não consigo dormir uma noite completa desde que o fogo cobriu o Brasil, especialmente desde que o lobo guará de VRB olhou pra mim. Explico.
Tenho ouvido de pessoas dizendo que nem sabiam que na nossa região ainda existiam lobos, tucanos, capivaras… animais que tem aparecido nas áreas urbanas. É preciso que saibam que eles viviam nos remanescentes da Mata Atlântica, pequenos amontoados de árvores que salpicam entre as pastagens secas e inférteis que cobrem nossa região chamada “Zona da Mata”. Deus sabe quanta luta, privação e sofrimento desses animais para existirem até hoje e encontrarem a morte pela carbonização.
Tom Jobim, acredito que lá pelos idos dos anos 1980, já observava que “não tem mais mata” em uma carta desabafo que fez ao sobrevoar nossa região em um voo de Nova York para o Rio de Janeiro (leia completo aqui). Enquanto Tom olhava, horrorizado, a destruição insana da beleza do Brasil, alguém ao seu lado disse que os americanos já tinham destruído as florestas e os “índios”, e que “nós temos os mesmos direitos… Meu Deus, o que que os índios pensarão disto, o que as árvores pensarão disto?”
Aí que está, meu caro leitor que sofre comigo: as árvores pensam? Os animais pensam? Certamente que os indígenas pensam e reagem. “Cacique perdeu mas lutou que eu vi”, testemunhou Djavan. De minha parte, queria vê-los vencer como o sol ao meio-dia na luta que são obrigados a enfrentar há 500 anos! Mas a gente acha que árvore e animal não pensam, não tem consciência. Isso é um mecanismo mental que criamos para tornar suportável a violência que infligimos sobre eles.
Outro dia um amigo me enviou um artigo científico que propunha compreendermos a perspectiva de comunicação dos povos ameríndios, em que relatam falar e ouvir com as coisas (rios, flores…) e com os animais (onças, pássaros…). Os cientistas nos alertavam para não mais recebermos isso como se fossem lendas e relatos “primitivos”, mas como são de fato: comunicação que conecta os mundos, que funde as realidades e dilui o homem na natureza. Simplificadamente, ocorre um deslizamento e o xamã consegue ver o mundo a partir do ponto de vista da coisa ou do animal.
Isso ficou na minha cabeça. Então, existe um ponto de vista da árvore? Do animal? Eles pensam?
E veio o vídeo do lobo guará de Visconde do Rio Branco. Primeiro, assumo o ponto de vista mais próximo do meu: o do cinegrafista. Sou o ser dominante deste planeta e o que me importa é que quero vê-lo de perto, registrar, publicar nas mídias. Corro atrás dele de carro, ponho meus olhos sobre ele, aponto meu celular. Pronto, uma postagem e várias curtidas.
E então acontece o deslizamento: me vejo no ponto de vista do lobo guará. Sozinho. Não tenho mais remanescente de mata para me esconder, alimentar, cuidar dos meus filhotes. Fujo do fogo por entre lugares estranhos, duros, hostis. Tento beber da água fétida do rio. No meio do meu desespero, vejo se aproximar um animal de metal, grande, escuro, com rodas, barulhento. Mesmo com as patas queimadas, meu instinto de sobrevivência me impulsiona a correr. Meu coração está acelerado, estou ofegante. Faço o que posso, mas não tenho mais para onde fugir. Cercado, me viro e olho para quem me persegue. O que vejo? Um predador.
O lobo guará olhou para mim e me viu um predador. E esse olhar não me deixa mais dormir.
OBS: O IBAMA alerta à população que, caso encontre algum animal ferido ou debilitado, a orientação é para não mexer no animal e imediatamente entrar em contato com a Polícia Militar Ambiental (190) ou Corpo de Bombeiros (193).
*Keila Siqueira de Lima tem formação em jornalismo e atualmente é servidora da Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais, na assessoria de comunicação. Está cursando mestrado em Comunicação, na UFJF.
Imagem ilustrativa: Semil-SP