Cultura escraviza, ou liberta?

— Cultura escraviza, ou liberta?

 

Desta maneira assim sumária, a pergunta foi dirigida a um jovem neouniversitário. A vida daquela criatura, ainda por viver em sua maior parte, já o acostumara à reflexão, à introspecção. Daí a surpresa da resposta, mas não dela, em si. É que o feedback, também sucinto, soou feito o estampido de um projétil de arma de fogo pesada: 


— Cultura escraviza!

 

Aquele jovem nem mesmo quis saber se o perguntador se referia a cultura no sentido de cultivo, de desenvolvimento intelectual, de saber, de costumes e valores de uma sociedade... Afinal, inúmeros eram os exemplos que ele, mesmo ainda adolescente, tinha para ilustrar a sua resposta. Dentre as citações, lembrou-se da temporada que passara no apartamento de dois irmãos estudantes, na cidade-polo. Pois bem:

 

Naqueles dias, o pai dos anfitriões, que viera de casa, de lá do interior do estado, fazia-se presente ali na “república”. O visitante percebeu que o homem, no almoço, alimentava-se, junto com os filhos, de “quentinha” (refeição simples, adquirida fresca). Diariamente no jantar, uma pequena parte da carne cozida que trouxera do interior era juntada ao saldos de comida não bulida (as divisórias continham cada uma um item), excluído feijão, pepino e mais alguma coisa que “não combinasse...”; adicionava-se macarrão ou canjiquinha, em pouca quantidade mas cozido em muita água; acrescentava tomate, cebola, dentes de alho, extrato de tomate, uma pimentinha. Às vezes ainda, alecrim, mais salsa e manjericão desidratados, quando os havia. 


Pronta a iguaria, a expectativa reinante cedia lugar a elogios ao sabor, que se repetiam a cada dia. E, em meio às conversas: 


— Pai, se a nossa irmã estivesse aqui, não só não comeria desta sopa deliciosa, como ainda ia esconjurar – observa o filho mais velho. 

 

— É mesmo, pai: e a minha mãe, será que ela ia deixar você fazer essa canja? – torna o caçula.


Aí, foi a vez do pai se manifestar a respeito: 


— Meus filhos: há famílias em cujas sessões de limpeza pós-festança como as de Natal e Ano-Novo, recolhem ao lixo porções consideráveis de ossada de peru, de frango, de cabrito, de leitoa, tudo contendo ainda muita carne; juntam-se aí grandes quantidades de tantos outros itens como arroz e iguarias diferentes e de custo elevado, tudo comida que ainda não tinha ido aos pratos e deixa, assim, de ser aproveitada. Isto alimentaria, e bem alimentados, uma legião de passa-fomes. No dia-a-dia, estas mesmas famílias procedem sistematicamente de igual forma, conquanto o seja com comidas mais comuns e em menores quantidades. Minha mãe, nem uma só vez na vida permitiu que em sua cozinha tal procedimento, que ela condenava, fosse adotado!! Vocês já devem ter reparado, filhos: que religião, via de regra as pessoas professam aquela que de geração em geração veio sendo passada...; que do cristianismo, antepassados de nós foram seguidores por ter sido o que lhes ensinaram (assim como sucede a budistas, muçulmanos, seguidores do judaísmo...); e que não ter religião significava — como para muitos ainda o é — ser má pessoa...; que tantos outros hábitos e costumes de cada povo têm suas raízes num passado, quer tenha sido por transmissão ou por imposição. 


Nesta altura, o visitante interrompe o interlocutor: 


— Mas, se bem ouvi, o senhor falou que a pessoa que não tinha religião era vista como gente ruim... e afirmou que isto ainda existe.

 

— Pois escute, meu jovem.


O homem pegou o livro Os Pensadores – Nietzsche. Abriu na página em que Marilena Chauí, no texto “O Vôo da Águia — A Ascensão da Montanha”, cita o filósofo alemão. Lembrou que Nietzsche viveu apenas 55 anos, falecendo em 1900; que o pai era pessoa culta e delicada e os avós, paterno e materno eram dedicados e respeitados pastores protestantes, carreira que o gênio pensou em seguir; que Nietzsche perdeu pai e irmão aos 5 anos de idade. Em seguida leu, de Marilena Chauí, filósofa da USP (excertos):

 

— A crítica nietzschiana à metafísica (...) combate a teoria das ideias socrático-platônicas (...), numa luta acirrada contra o cristianismo. Para Nietsche, o cristianismo concebe o mundo como um vale de lágrimas (...). Trata-se (...) de uma vulgarização da metafísica (...) O cristianismo é a forma acabada de perversão dos instintos (...), repousando em dogmas e crenças que permitem à consciência fraca e escrava escapar à vida, à dor e à luta, e impondo a resignação e a renúncia como virtudes. (...) inventaram o além para compensar a miséria (...); forjaram o mito da salvação da alma (...); criaram a ficção do pecado (...); (...) a consciência de culpa (...) (... as formas negativas se interiorizam, dizem-se culpadas e voltam-se contra si mesmas), (...) momento de sublimação do sofrimento e de negação da vida (...) a vida transforma-se em fraqueza e mutilação (...). (...) As palavras, segundo Nietzsche, sempre foram inventadas pelas classes superiores e, assim, não indicam um significado, impõem uma interpretação.


Diante do silêncio dos expectadores o velho, fitando-lhes o semblante meio assustado completou, agora com as suas próprias palavras:

 

— Quanto ao desmedido desperdício de comidas, há — como vocês viram — quem tenha dentro da própria família exemplo de cultura libertadora, mas também daquela classificável de escravizante. E no caso da religião, há os espertalhões que a utilizam para o mal, para benefício próprio, para enriquecimento ilícito ao lesar a consciência dos seguidores, ao gerar fanáticos, que se juntam àqueles que se comportam como escravos por opção. Da mesma forma como houve um Nietzsche, que passou a vida insistindo em buscar a verdade verdadeira, sem recheios, sem rótulos, sem explicações forjadas, falsas, ardilosas, “constantinosas”, legando exemplo incomum, quase inexistente, de coragem, de intrepidez, de empenho da própria saúde, da vida mesmo, na causa abraçada (Nietzsche morreu louco) que, em última análise, deveria sê-lo por toda a humanidade.


E finalizou:

 

— Pois tudo isto, meus filhos, afastada a má fé (como quisemos dizer), é questão de cultura! 


*Antônio Carlos Estevam. Cronista e ensaísta, é membro efetivo da Academia Ubaense de Letras, sucedendo ao escritor Sílvio Braga na cadeira n. 21, que tem por patrono o jornalista Octávio Braga.








Estevam é produtor do veículo de comunicação independente Djaôj... e explica que não é sigla, é o nome completo do informativo. A pronúncia pelo homem do campo sói ser ouvida dijaôiji, querendo dizer: recentemente; há pouco tempo; ainda hoje... Exemplo: “— Tem visto fulano? — Uai, di-já-ôi-ji ele teve aqui". No caso do nosso periódico, “Djaôj...”, assim com reticências, significaria, mais ou menos: noticiando fatos, preferencialmente recentes.
















A expressão tem como base a canção “De já hoje” com letra e música do cantor e compositor nativista gaúcho Adair de Freitas.








academiaubaensedeletras@gmail.com





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